A História como Futuro

Uma intervenção informal, destinada a dinamizar algum debate e concebida para um público que à partida desconhecia qual fosse. Trata-se da minha participação no TEDx Coimbra deste ano, onde falei sobre «A História como Futuro» (o mote do encontro era Pelo sonho é que vamos).

No reino da apatia

Até ao início dos anos oitenta, principalmente na Europa e nas Américas, dois setores sociais mostravam-se particularmente sensíveis aos processos de crítica e de reforma da ordem do mundo, neles jogando um papel muitas vezes decisivo enquanto forças dinâmicas dos tempos de mudança. Pela natureza da sua formação e da sua associação ao mundo do conhecimento, da dimensão essencialmente reflexiva da sua atividade, da sua natural abertura ao mundo e das suas expectativas históricas, os intelectuais – pensadores, artistas, escritores, jornalistas – e os estudantes mostravam-se mais naturalmente dispostos a intervir como fator nuclear, estímulo ou apoio no domínio da reflexão crítica, do conhecimento e da atividade cívica. Continuar a ler

Fotografia de Cralos

Nasci e vivi até aos dezasseis numa vila do interior beirão. Na época, não existiam por aqueles lados, como não existia em praticamente lado algum, estradas decentes e rápidas. Uma reta de cem metros era tão rara que parecia uma pista de ensaios para fanáticos da velocidade. Notavam-se mais ainda esses limites quando se vivia numa região de montanha que transformava qualquer jornada numa pequena aventura. O trajeto que leva hoje 45 minutos a fazer durava então o dobro, por vezes mais. Além disso, poucos possuíam automóvel e ninguém sem profissão estável e razoavelmente remunerada tinha sequer carta de condução. O isolamento era aí, sobretudo aí, a condição natural da existência, agravado pelo facto da informação que chegava ser parca, lenta e filtrada pela censura. Era o país possível, no qual tudo decorria modelado por aquele «viver habitualmente», sem o calor da novidade ou do desassossego, que à imagem do rústico temeroso das cidades Salazar quisera para todos. Continuar a ler

Humor e resistência

Publicado originalmente no Diário As Beiras.

Conta o ator e apresentador australiano Ben Lewis que uma das fontes das quais se serviu para escrever «Foice e Martelo», um divertidíssimo livro sobre o manancial de piadas que circularam à socapa por todo o leste europeu antes da queda do Muro de Berlim (edição portuguesa da Guerra & Paz), foi «1001 Anedotas», volume da autoria do professor eslovaco Jan Kalina publicado em 1969 na cidade de Bratislava. Nele se compilavam pequenas histórias que corriam nos países do «socialismo realmente existente» satirizando os vícios dos regimes de partido único e dos seus burocratas. Vale a pena retomar a pequena história desta obra e dos efeitos que ela teve na vida do seu autor. Continuar a ler

Coimbra e as livrarias

Fotografia de Hannah

Publicado originalmente no Diário As Beiras.

Para George Steiner, um dos marcadores da «ideia de Europa» foi traçado pelo roteiro dos cafés, lugares ímpares «de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos». Abertos a todos, funcionaram até há pouco tempo, de Odessa a Lisboa, como espaços de sociabilização e reconhecimento político ou cultural, por vezes decisivos na evolução das cidades e dos Estados. Algo de semelhante aconteceu com as livrarias. O embaratecimento e a massificação do livro impresso transformaram-nas em espaços de uma civilidade particular, como nós vitais de uma rede comunitária de conhecimento e de cidadania. E como lugares de uma socialização peculiar, envolvendo livreiros e clientes, que ali encontravam sítios acolhedores e de certa forma democráticos. As tertúlias, nascidas em Paris e logo disseminadas por todo o lado, representaram um elemento fundamental dessa vida partilhada, espaços de encontro onde de tudo se tratava, da literatura à política, do cinema à gastronomia, do futebol à má-língua. Sempre com os livros como pretexto e moeda de troca. Continuar a ler

Mitos do senso comum

Um dos resultados da crise financeira iniciada em 2008 foi a propagação de um conjunto de fábulas que, sob a forma de inquestionáveis «verdades», aparentemente tendem a determinar a inevitabilidade do «modelo neoliberal», apesar do seu estado comatoso. Dito de outra forma: a gravidade dos problemas surgidos em catadupa provocou em boa parte da opinião pública, não a rejeição mais ou menos radical deste modelo, mas antes a afirmação, aparentemente consensual, do princípio segundo o qual tudo o que aconteceu de mau se ficou a dever a décadas de políticas que ampliaram o papel do Estado social, restringiram a liberdade dos mercados e impediram a hegemonia da iniciativa privada. É com este pano de fundo, e com uma intenção assumidamente militante determinada pela necessidade de dissolver tais fábulas e de desconstruir falsos consensos, que um sociólogo, um historiador e um geógrafo compilaram testemunhos de especialistas capazes de os contestarem de forma documentada, consistente e ao mesmo tempo pedagógica. Na introdução, declaram a necessidade de se oporem a essa «fabricação do consentimento» que tem nas ideias do senso comum uma das mais poderosas forças motrizes. «Repetidas pelo discurso político, reproduzidas nas conversas de autocarro, reforçadas pelas histórias de alguma comunicação social», estas ideias são, na sua opinião, «essenciais no jogo de representações» que tem transformado o evitável em inevitável e tendido a qualificar como luxos um conjunto de direitos sociais e de fatores de qualidade de vida conquistados ao longo de décadas. Continuar a ler

O imperativo cosmopolita

Ulrich Beck

Conhecido principalmente pela sua teoria da «sociedade do risco», que considera a atual distribuição dos riscos incapaz de corresponder às diferenças sociais, económicas e geográficas próprias da primeira modernidade, impondo ao mesmo tempo novos perigos disseminados à escala global e de mais difícil controlo, o sociólogo alemão Ulrich Beck (n. 1944) propõe-nos num curto ensaio uma interpretação pessoal da presente crise financeira e das suas consequências sociais e políticas para a Europa. O plano, singular e inspirador, comporta três partes: as duas primeiras têm uma natureza analítica, destacando as mudanças nos equilíbrios de poder que a crise dos mercados determinou e o novo mapa político que delas resultou; já a terceira é assumidamente prospetiva, tendo como objetivo sondar as formas de conseguir um novo contrato social destinado a manter a grande casa europeia, afastando para tão longe quanto possível a catástrofe anunciada e promovendo o gradual ressurgimento das condições de prosperidade, igualdade, partilha e democracia. Continuar a ler

O lugar da História

A Libertação de Paris

Fragmento da crónica do historiador José Pacheco Pereira saída no Público de 11 de Fevereiro de 2012. Uma intervenção sobre o valor, o papel e o lugar do conhecimento histórico.

(…) É verdade que saber História vale muito pouco no mercado de trabalho, mas também é verdade que saber Matemática pura, Física Teórica, Astronomia, Biologia Molecular, já para não falar de Filosofia, Sociologia, Geografia, Grego Clássico e Latim, Literatura Portuguesa, também não valem muito mais. E, by the way, os milhares de licenciados em Marketing, Economia, Jornalismo, ou como se diz agora «Ciências de Comunicação», Artes Performativas, Arquitectura, Composição, os pianistas, violoncelistas, violinistas, também não vão muito longe. Seguindo o critério do nosso mago do «empreendedorismo», não é muito difícil, e no meu caso gratuito, aconselhar cursos seguros e certos. Eu costumo aconselhar maltês, uma língua de que há enorme escassez de tradutores e intérpretes na UE, e o turco, russo, chinês e árabe também podem fazer parte do currículo dos candidatos a «descomplexados competitivos». Mandarim ou cantonês de certeza que têm futuro, assim como «beber a água do Bengo», na exacta composição químico-financeira corrente para esses lados. Continuar a ler

Contra a supressão dos feriados

Abaixo-assinado da responsabilidade de um grupo de historiadores.

A recente proposta do Governo de acabar com quatro feriados (dois religiosos e dois civis: o feriado do 1º de Dezembro e o do 5 de Outubro) merece da parte dos historiadores que subscrevem este documento uma clara oposição.

Em primeiro lugar, porque assenta numa evidente demagogia: ao contrário do que o Governo, pela mão do seu Ministro da Economia, vem atabalhoadamente explicar ao país, a produtividade e a competitividade da economia nacional não dependem em nada de essencial do número dos feriados em vigor. Países europeus ou fora da Europa com tantos ou mais feriados registam níveis de produtividade e competitividade muito superiores aos de Portugal, sendo que é precisamente nas economias mais competitivas e avançadas que se verifica um menor número médio de horas de trabalho. As razões são obviamente outras e bem mais profundas, tal como são outras as razões para atacar os feriados, em especial os que, como o 1 de Dezembro e o 5 de Outubro, são depositários de um elevado valor simbólico para a comunidade. Continuar a ler

Do impasse radical à libertação

SZ

Para além de filósofo, crítico e académico, atividades em regra associadas a hábitos de recolhimento e ao sossego das bibliotecas, Slavoj Žižek é, como se sabe, personagem único do seu próprio espetáculo. Deve-o em parte ao estilo idiossincrático e enérgico, no qual o desassombro e a iconoclastia ocupam um lugar central. Mas também ao facto de atrair um público interessado na reflexão, por vezes nos sound bites, de alguém que volta a colocar a ideologia, há duas décadas declarada liquidada, no centro do debate teórico. Fá-lo seguindo um método caleidoscópico, no qual os seus interesses de partida – Lacan, Lenine, o ciberespaço, a crise da modernidade, o pós-Marxismo ou Hitchcock – surgem combinados com os mais diversos e desclassificados temas da materialidade contemporânea, num processo de «tudo ligado com tudo», associado à diluição da fronteira entre alta e baixa cultura e ao repensar radical da esquerda política, que reúne legiões de indefetíveis entusiastas mas também de cáusticos detratores. Viver no Fim dos Tempos, publicado originalmente em 2010 e acabado de traduzir numa série de edições do esloveno que a Relógio d’Água tem vindo a publicar, é um excelente exemplo dessa prolixidade e da vastidão de um olhar que incorpora a capacidade de questionar as dimensões menos visíveis mas não menos obsidiantes do mundo atual. Continuar a ler