Publicado originalmente no Diário As Beiras.
Para George Steiner, um dos marcadores da «ideia de Europa» foi traçado pelo roteiro dos cafés, lugares ímpares «de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos». Abertos a todos, funcionaram até há pouco tempo, de Odessa a Lisboa, como espaços de sociabilização e reconhecimento político ou cultural, por vezes decisivos na evolução das cidades e dos Estados. Algo de semelhante aconteceu com as livrarias. O embaratecimento e a massificação do livro impresso transformaram-nas em espaços de uma civilidade particular, como nós vitais de uma rede comunitária de conhecimento e de cidadania. E como lugares de uma socialização peculiar, envolvendo livreiros e clientes, que ali encontravam sítios acolhedores e de certa forma democráticos. As tertúlias, nascidas em Paris e logo disseminadas por todo o lado, representaram um elemento fundamental dessa vida partilhada, espaços de encontro onde de tudo se tratava, da literatura à política, do cinema à gastronomia, do futebol à má-língua. Sempre com os livros como pretexto e moeda de troca.
Não eram diferentes as livrarias de Coimbra. Por motivos que se prendem com a identidade e a localização da cidade, com o peso que nela tiveram professores, estudantes, profissionais liberais e outras pessoas com hábitos de leitura, foram muitas aquelas que serviram, através das sucessivas gerações, como locais de conhecimento, de encontro e até de resistência. E mesmo quando as tertúlias começaram a morrer e a relação com os frequentadores se tornou mais individual, esse papel de aglutinador de modos de estar e de vivências manteve-se. Leitor e cliente crónico, nelas encontrei centenas, milhares de vezes, um espaço de hábitos e de pequenos prazeres, em visitas constantes para saber das novidades, perguntar por um título ou apenas conversar com os livreiros, sempre disponíveis, sabedores e amigos.
Por isso, é forçosamente com mágoa que vejo hoje em Coimbra o quase completo desaparecimento das livrarias como espaços onde se ia para comprar livros ou apenas ver os títulos, com a certeza de se ser bem recebido, de se ser reconhecido como cliente e como cúmplice, de se saber que, em caso de dúvida, sempre haveria resposta pronta, atenta e informada. Onde as obras estavam organizadas em função dos temas procurados pelos leitores habituais e não, como nos hipermercados, para destacar os produtos de ocasião. Onde era possível conversar com livreiros zelosos e amáveis sobre o tempo que fazia ou a vida do dia-a-dia, sem a azeda sensação de os estarmos a incomodar. Tal como as coisas estão, perdemos nós, os fiéis leitores, um telhado acolhedor, substituído pelos inóspitos formulários das compras online. Mas perdem também as livrarias, entregues aos leitores ocasionais que tão depressa aparecem como se evaporam. Deixando as estantes às moscas ou preenchidas com manuais de autoajuda e bugigangas da Hello Kitty.
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