«Não sou um filósofo, só sei falar daquilo que vivi», escreveu o autor de A Peste no terceiro volume dos Cahiers. A afirmação condensa um dos dois argumentos nucleares de A Felicidade em Albert Camus, de Marcello Duarte Mathias, primeiramente editado em 1975, do qual saiu há pouco tempo uma 3ª edição revista, acrescida de um prefácio atualizado e de três novos textos. Na verdade, e tal como se empenha em demonstrar o escritor e embaixador, «raros casos terá havido de uma tão completa osmose entre um autor e uma obra e de uma tão íntima associação entre os dois e o seu tempo». Se a leitura deste ensaio explica de um modo inequívoco essa interligação, mantida por Camus em tudo aquilo que escreveu, mostra também que ela teve consequências «para o bem e para o mal, como se diz». De facto, a imposição da coerência entre a vida e a obra, forçando atitudes de independência, determinou –sobretudo no confronto com os rígidos ambientes da esquerda filo-marxista do pós-guerra que o escritor frequentou – polémicas e ruturas dolorosas com aqueles com quem percorrera parte importante do seu caminho literário, filosófico e político. O resultado foi uma proscrição que só muitos anos após a sua morte começou a ser anulada. O obituário saído no Times em janeiro de 1960 intitulava-se com propriedade «A man who walked alone». Continuar a ler
Erros seus, má fortuna
Qualquer professor, independentemente do grau do ensino no qual exercita a profissão, depara-se a todo o instante com problemas da comunicação associados a erros do português escrito, alguns deles crónicos, que os seus alunos cometem. Quem andasse distraído poderia, no entanto, pensar que no ensino superior essa praga – que tanto deforma os textos e prejudica a sua clareza – se sentiria bastante menos que noutros graus de ensino, mas os últimos anos, e os últimos cinco ou seis em particular, terão servido para desfazer tal ideia. Lemos agora relatórios, trabalhos, testes escritos, e-mails dos alunos, nos quais as palavras incorretamente escritas, a par de uma sintaxe cada vez mais trôpega ou simplificada, por vezes inadequada ao padrão de discurso no qual se está a procurar comunicar, representam um verdadeiro tormento, prejudicando a expressão fluida mas rigorosa do conhecimento. Continuar a ler
O fim de um tabu
Apesar de conservar um rastro visível e constante na vida pública nacional das últimas quatro décadas, parte significativa do processo de descolonização de Angola tem permanecido em boa medida calada. As causas deste silenciamento são diversas. Há desde logo a influência da narrativa oficial, produzida pelas autoridades portuguesas em circunstâncias históricas complexas e dramáticas logo nos anos de 1974-1975, a qual foi ocasionalmente contrariada mas jamais revista. Outra causa tem a ver com o uso recorrente de relatos – geralmente impostos por setores politicamente conservadores ou emocionalmente envolvidos nos acontecimentos – mais pontuados pela nostalgia, pelo rancor ou pela incompreensão que por uma tentativa de perceber realmente aquilo que aconteceu. Além disso, o que se passou em Angola naquele período foi de certa forma empurrado para segundo plano pelos terríveis caminhos da violência ali percorridos após a independência do país. Continuar a ler
Humor e resistência
Publicado originalmente no Diário As Beiras.
Conta o ator e apresentador australiano Ben Lewis que uma das fontes das quais se serviu para escrever «Foice e Martelo», um divertidíssimo livro sobre o manancial de piadas que circularam à socapa por todo o leste europeu antes da queda do Muro de Berlim (edição portuguesa da Guerra & Paz), foi «1001 Anedotas», volume da autoria do professor eslovaco Jan Kalina publicado em 1969 na cidade de Bratislava. Nele se compilavam pequenas histórias que corriam nos países do «socialismo realmente existente» satirizando os vícios dos regimes de partido único e dos seus burocratas. Vale a pena retomar a pequena história desta obra e dos efeitos que ela teve na vida do seu autor. Continuar a ler
O poder das palavras
Nas últimas linhas de um dos derradeiros textos que ditou para a New York Review of Books, quando as palavras ainda lhe corriam fluídas pelo cérebro enquanto sentia já dificuldade em pronunciá-las com a clareza que sempre procurou, Tony Judt reflectia sobre os problemas da comunicação contemporânea: «Se as palavras se deterioram, o que poderá substituí-las? Elas são tudo aquilo que nos resta.» Não se referia, porém, ao seu problema pessoal, ao fim à vista da sua capacidade para comunicar, que sabia irrevogável: no artigo «Words» falava principalmente da preocupação com o recuo do antigo modelo de educação humanista, que tanto tem vindo a ser desacreditado pelos arrogantes campeões do «saber técnico». Falava da perda de voz dos que usam a língua, central nesse modelo que formou o seu e o nosso mundo, para conhecer sem coacções, para ocupar os espaços públicos do debate, para transformar a controvérsia num factor de dignidade e de liberdade. Falava da perda do lugar central da «fala pela fala», como processo de aproximação e de verdadeiro conhecimento. Dessa perda que, neste tempo que promove o triunfo do prático, do lógico, do eficaz, do «útil», muitos de nós sentimos, todos os dias, com dor e com preocupação. Dessa perda que Tony Judt observava mesmo em lugares, como as universidades, originalmente concebidas justamente para impedi-la de ocorrer: «A “profissionalização” do discurso académico – e a deliberada apreensão por parte dos humanistas da segurança da “teoria” e da “metodologia” – favorece o obscurantismo.» Judt via nas palavras, no uso e no abuso das palavras, na sua troca sem compromissos, o espaço ideal de resistência perante a incompreensão e o individualismo impostos pela falta de vozes críticas ou pelo ruído daquelas que tanto falam e nada dizem.
Coimbra e as livrarias
Publicado originalmente no Diário As Beiras.
Para George Steiner, um dos marcadores da «ideia de Europa» foi traçado pelo roteiro dos cafés, lugares ímpares «de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos». Abertos a todos, funcionaram até há pouco tempo, de Odessa a Lisboa, como espaços de sociabilização e reconhecimento político ou cultural, por vezes decisivos na evolução das cidades e dos Estados. Algo de semelhante aconteceu com as livrarias. O embaratecimento e a massificação do livro impresso transformaram-nas em espaços de uma civilidade particular, como nós vitais de uma rede comunitária de conhecimento e de cidadania. E como lugares de uma socialização peculiar, envolvendo livreiros e clientes, que ali encontravam sítios acolhedores e de certa forma democráticos. As tertúlias, nascidas em Paris e logo disseminadas por todo o lado, representaram um elemento fundamental dessa vida partilhada, espaços de encontro onde de tudo se tratava, da literatura à política, do cinema à gastronomia, do futebol à má-língua. Sempre com os livros como pretexto e moeda de troca. Continuar a ler
Mitos do senso comum
Um dos resultados da crise financeira iniciada em 2008 foi a propagação de um conjunto de fábulas que, sob a forma de inquestionáveis «verdades», aparentemente tendem a determinar a inevitabilidade do «modelo neoliberal», apesar do seu estado comatoso. Dito de outra forma: a gravidade dos problemas surgidos em catadupa provocou em boa parte da opinião pública, não a rejeição mais ou menos radical deste modelo, mas antes a afirmação, aparentemente consensual, do princípio segundo o qual tudo o que aconteceu de mau se ficou a dever a décadas de políticas que ampliaram o papel do Estado social, restringiram a liberdade dos mercados e impediram a hegemonia da iniciativa privada. É com este pano de fundo, e com uma intenção assumidamente militante determinada pela necessidade de dissolver tais fábulas e de desconstruir falsos consensos, que um sociólogo, um historiador e um geógrafo compilaram testemunhos de especialistas capazes de os contestarem de forma documentada, consistente e ao mesmo tempo pedagógica. Na introdução, declaram a necessidade de se oporem a essa «fabricação do consentimento» que tem nas ideias do senso comum uma das mais poderosas forças motrizes. «Repetidas pelo discurso político, reproduzidas nas conversas de autocarro, reforçadas pelas histórias de alguma comunicação social», estas ideias são, na sua opinião, «essenciais no jogo de representações» que tem transformado o evitável em inevitável e tendido a qualificar como luxos um conjunto de direitos sociais e de fatores de qualidade de vida conquistados ao longo de décadas. Continuar a ler
Como viver sem otimismo?
Publicado originalmente no Diário As Beiras.
Em 1949 a terra ainda estava empapada de sangue e cheirava a pólvora. As recordações dos que haviam sobrevivido à Guerra continuavam, como continuariam por muitos anos, a preencher-lhes as insónias sacudidas pelo eco das bombas e das botas militares. Alguns chegaram mesmo a dizer que já não eram capazes de se adaptarem ao sossego da paz. Quando, nesse ano, Adorno falou da impossibilidade de escrever poesia depois de Auschwitz – podia ter falado de compor uma sinfonia, de pintar um quadro, de realizar um filme, de olhar o futuro na plenitude da esperança – referia-se ao desespero que nos assola e derruba depois de olharmos o horror mais indizível. O filósofo poderia ter perguntado ainda se seria possível comer, rir, trabalhar ou amar, conjeturando sobre se algum desses gestos valeria a pena. Deixando no ar que não, que não valeria, e empurrando-nos para o fundo mais fundo do desalento. Continuar a ler
O impertinente de serviço
George Orwell conviveu toda a vida – porque a percorreu na fase crítica da inquietante «era dos extremos» que preencheu a parte maior do século vinte – com a hostil incompreensão sempre dirigida aos que pensam de forma pessoal, definindo um padrão de comportamento ético avesso às absolutas certezas, à ditadura das maiorias ocasionais ou à orientação mecânica dos cata-ventos. Por isso a sua ação, as suas convicções e a sua memória foram sempre, tanto durante os anos de intensa atividade como jornalista e escritor quanto (e talvez sobretudo) após a sua morte, acompanhadas de difamações e de equívocos, certas vezes de rancores completamente insanos. Embora o tenham sido também de paixões profundas por parte de quem se foi aproximando dos ideais libertários, do amor pela humanidade do mundo e do direito ao testemunho que Orwell sempre reivindicou. Mas a semente do mal foi permanecendo: os conservadores e a direita julgaram-no e julgam-no como perigoso esquerdista, enquanto a esquerda estalinista e os «idiotas úteis», subservientes do velho Kremlin, bem como os seus esparsos herdeiros contemporâneos, o consideraram um «espião», um divisionista e um snob. Continuar a ler
O paraíso temporário
Desde 1927, ano em que este livro de Joseph Roth (1894-1939) foi publicado, quatro importantes fatores modificaram profundamente a condição, a vida e o destino dos judeus do leste europeu. O primeiro foi a acentuada expansão do antissemitismo na Europa Central, com esse cortejo de sofrimento, exclusão, fuga e extermínio que culminou no Holocausto e mudou radicalmente a sua geografia física. O segundo foi a formação do Estado de Israel em 1948, consumando a definição de uma nova área de povoamento e, em consequência, a rápida reformulação das tradições e das condições de vida daqueles que ali se foram estabelecer. O terceiro fator foi o retorno das perseguições na antiga União Soviética, visível nos últimos anos de Estaline mas que não se esgotou após a sua morte e criou as condições para um novo êxodo. E o último foi a atitude expansionista e agressiva, progressivamente imperante no Estado de Israel a partir das guerras dos Seis Dias e do Yom Kipur, que alterou o modo de reconhecer os direitos históricos dos judeus. Em pouco mais de meio século, esta conjugação de fatores tornou irreconhecível o universo que o jornalista e escritor austríaco aqui procurou descrever e explicar, dispersando ou transformando para sempre aqueles que o formaram. Continuar a ler
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