Para além de ser um dos nossos mais importantes medievalistas, José Mattoso é também um historiador que não tem vivido a sua profissão como um espartilho, refletindo sobre domínios que se cruzam com os caminhos do contemporâneo e a experiência da cidadania. Comprovam-no os quinze ensaios escritos ao longo das últimas quase duas décadas que este Levantar o Céu reúne. Fá-lo adotando uma busca de sentidos, apoiada sempre numa reflexão muito pessoal, para essa «sabedoria verdadeira» que jamais se mostra à primeira vista, sendo por isso necessário «desejá-la, compreendê-la, descobri-la», aceitando que ela «não explica nada, explica-se». O título é pois uma declaração de intenções: se «levantar o céu» impõe a vontade de desvendar a relação entre o ideal que este representa e a materialidade da vida terrena, como possível via para perceber a mudança na ordem do mundo, já compreender o percurso labiríntico para alcançar a sabedoria é o mote que acompanha estes textos. A bússola oferece-a Mattoso no encontro, tantas vezes julgado como um inevitável desencontro, ou no equilíbrio que pessoalmente sempre procurou obter, entre fé e razão. O ceticismo do qual em alguns momentos nos dá conta apenas reforça esse sentido de procura. Continuar a ler
Arquivo da Categoria: Leituras
História, memória e política
O passado, modos de usar, de Enzo Traverso – saído em 2005, antes de L’Histoire comme champ de bataille –, trata principalmente daquilo a que Habermas chamou «o uso público da história». O trabalho deste historiador e cientista político italiano tem vindo a ser preenchido com o estudo de épocas e de temas contemporâneos com os quais conflituam interesses atuais e que por esse motivo permanecem perturbantes, como acontece com a «questão judaica», o Holocausto, o totalitarismo, o fascismo, a violência nazi, o comunismo ou o eurocentrismo. Em conexão com todos eles, Traverso tem-se ocupado com os problemas difíceis mas incontornáveis que levanta a conexão entre história e memória. Aquela proximidade com o presente torna entretanto o tratamento destes assuntos algo que não pode deixar de dialogar – independentemente do rigor inerente à intervenção própria dos historiadores – com as suas escolhas políticas, com as repercussões do seu trabalho entre os outros profissionais do mesmo ofício e, acima de tudo, com o impacto junto dos setores da opinião pública que vão acolhendo os ecos do que dizem ou escrevem. Continuar a ler
Governar num mundo em guerra

Logo em 1948, quando começou a ser publicado o conjunto de seis livros da autoria de Winston Churchill sobre as circunstâncias e as peripécias que rodearam a Segunda Guerra Mundial, depois condensados nestas Memórias agora traduzidas, um dos seus opositores políticos não hesitou ao proclamar que o antigo primeiro-ministro tinha, de facto, escrito principalmente sobre si próprio. Não era no entanto essa, como seria de prever, a opinião do próprio sobre o trabalho que, com uma tenacidade invulgar em quem já ultrapassara sete décadas de uma vida ativa, acabara de produzir e de tornar público. Procurando atribuir um sentido de rigor e de honorabilidade à obra, Churchill insistiu então em afirmar que, embora deixasse os julgamentos sobre o seu papel no decorrer do conflito para o trabalho que de futuro seria levado a cabo pelos historiadores, de modo algum abdicava de ser um deles. Continuar a ler
Coimbra: a cidade e a luta estudantil
Disponível em formato pdf um texto que escrevi em 2007 sobre «Coimbra: a luta estudantil e o património identitário da cidade». Poderá servir de munição, ou de contrapeso, no debate atualmente em curso sobre os usos e os abusos da praxe estudantil. E também para uma apreensão mais completa do papel dos estudantes na vida e na história deste lugar diferente. Uma apreensão menos passadista sem por isso promover o esquecimento. Pode baixá-lo aqui.
Nostalgia e utopia
A Priberam acaba de divulgar os dados anuais de acesso ao seu dicionário de português online. A palavra mais procurada em 2011 foi «nostalgia», seguida por «amor», que tinha conseguido o primeiro lugar em 2010, mas cujas buscas foram diminuindo ao longo do último ano. Existe uma leitura simples, linear, desta tendência, que remete sem grandes hesitações para um interesse pelo passado observado, no atual contexto de recuo dos direitos sociais e das expetativas individuais, como uma «idade do ouro» tão quimérica quanto desejável. Mas podemos ir mais longe na observação do conceito. Recordei então um artigo escrito em 2007 e que tem um pouco a ver com isto tudo. Transcrevo apenas o primeiro parágrafo, remetendo depois para um link que leva ao artigo completo. Dada a altura em que foi concluído, não segue as normas do último acordo ortográfico.
A experiência contemporânea encerra uma sobrecarga da memória e um interesse pelo passado que adoptam a nostalgia como ferramenta da utopia. Percorremos os jornais e as colecções multimédia que oferecem, observamos a publicidade que apela a reminiscências identitárias, constatamos a atenção da crítica e a crescente popularidade dos filmes, romances, documentários e concursos que se cruzam com o fio da história. Reconhecemos também o revivalismo e as dinâmicas de celebração que integram a política cultural dos governos e das autarquias, ou se revelam em iniciativas públicas de diversas instituições. Ao mesmo tempo que o ensino da história recua nos currículos escolares e se reduz a banalidades, um interesse crescente pelo passado e pela sua carga simbólica emerge e expande-se aos nossos olhos, como via escolhida para a imaginação de uma vida-outra. [O artigo completo em formato pdf está aqui.]
Do impasse radical à libertação
Para além de filósofo, crítico e académico, atividades em regra associadas a hábitos de recolhimento e ao sossego das bibliotecas, Slavoj Žižek é, como se sabe, personagem único do seu próprio espetáculo. Deve-o em parte ao estilo idiossincrático e enérgico, no qual o desassombro e a iconoclastia ocupam um lugar central. Mas também ao facto de atrair um público interessado na reflexão, por vezes nos sound bites, de alguém que volta a colocar a ideologia, há duas décadas declarada liquidada, no centro do debate teórico. Fá-lo seguindo um método caleidoscópico, no qual os seus interesses de partida – Lacan, Lenine, o ciberespaço, a crise da modernidade, o pós-Marxismo ou Hitchcock – surgem combinados com os mais diversos e desclassificados temas da materialidade contemporânea, num processo de «tudo ligado com tudo», associado à diluição da fronteira entre alta e baixa cultura e ao repensar radical da esquerda política, que reúne legiões de indefetíveis entusiastas mas também de cáusticos detratores. Viver no Fim dos Tempos, publicado originalmente em 2010 e acabado de traduzir numa série de edições do esloveno que a Relógio d’Água tem vindo a publicar, é um excelente exemplo dessa prolixidade e da vastidão de um olhar que incorpora a capacidade de questionar as dimensões menos visíveis mas não menos obsidiantes do mundo atual. Continuar a ler
Um ideal abandonado
É provável que passe despercebida nas livrarias, ou que apenas congregue o interesse de um pequeníssimo número leitores, uma obra de Rob Riemen chamada Nobreza de Espírito, um ideal esquecido (ed. Bizâncio). O título faz ressoar a defesa de um conceito presumivelmente gasto e fora de moda. O que até nem será de admirar se tivermos em conta que este ensaísta e filósofo holandês define como assumida inspiração para o seu trabalho a vida e a obra de Thomas Mann. E em 1955, quando desapareceu, Mann era já um homem de «outra época», que na derradeira palestra pública, «Os Anos da Minha Vida», decidira, contra a tendência que já se formava no horizonte, falar do ser humano como criatura una na diversidade, capaz de moldar o tempo e viver a vida cultivando-os, de forma autónoma, num sentido globalmente comum e forçosamente partilhado.
Mas ainda que possa corresponder a um ideal abandonado, seja o que for que possamos tomar por «nobreza de espírito» trata-se de algo, de uma escolha, de uma experiência, que apenas está ao alcance dos humanos. Irremediavelmente associada à fidelidade tenaz, necessariamente difícil porque requer coragem, a fatores que «nobilitam» – como verdade, liberdade, justiça e razão enunciados sem aspas – e, por isso mesmo, posta em causa sempre que se considera que valor algum tem uma dimensão universal, podendo caber, ainda que naturalmente adaptado a diferentes circunstâncias e distintas realidades, em qualquer tempo ou lugar. A relativização de todos os princípios e de todos os códigos, hoje imperante em muitas áreas do pensamento político, do saber científico, das práticas sociais ou do relacionamento entre os povos, tem feito desaparecer a afirmação de princípios gerais de entendimento, capazes de dotarem o humano de um sentido partilhado, solidário, que todos possam reconhecer e que a todos possa aproximar. Promovendo, de forma subtil mas contínua, um retorno histórico à sensibilidade pré-humanista, autárcica e anti-universalista que mergulha fundo na obscuridade medieval. Um ar do tempo que, no entanto, pode ser contrariado. O primeiro passo para o conseguir passará por uma compreensão das potencialidades da alternativa. Uma tarefa na qual, com este livro a contracorrente, Riemen procura participar.
[Versão revista de um texto publicado na revista LER de Outubro.]
Uma fotocopiadora, uma cela
Um estudo a correr no ISCTE, do qual acabam de ser reveladas algumas conclusões preliminares, aponta para a existência em Portugal de 500 postos de venda de livros fotocopiados. Refere-se apenas, muito provavelmente, a unidades comerciais que admitem como normal este tipo de prática, uma vez que serão em muito maior número as fotocopiadoras privadas ou em funcionamento em instituições de investigação e de ensino que, sem o admitirem, fazem diariamente cópias de livros, artigos ou capítulos de obras. Um dos responsáveis pelo estudo fala entretanto de um «efeito pernicioso no mercado». O resultado previsível da sua publicitação será com toda a probabilidade o reforço das medidas policiais e penais aplicadas em reprimir este género de prática. Mas as consequências sociais e culturais desta atitude serão devastadoras para a expansão do conhecimento e para a sustentação dos hábitos de leitura.
Mesmo entre aqueles que deveriam fazer da leitura o centro da sua vida ativa, sabe-se que ler não será uma prioridade para grande número de portugueses, mas a verdade é que a falta de investimento na aquisição de títulos pela maioria das bibliotecas, levando muitas vezes à inexistência sistemática de edições recentes e à presença de um só exemplar de cada título – ao que pode juntar-se a inexistência de uma política de stocks e de preços acessíveis nas livrarias – faz com que sem o recurso à fotocópia se torne rigorosamente impossível para a maioria aceder a obras indispensáveis para o padrão de atividade a que se dedicam. Os principais afetados serão, naturalmente, os estudantes, os professores e os investigadores. Ou os amantes de obras e de leituras raras. Dito de outra forma: sem livros fotocopiados, não existirão livros atualizados disponíveis para as necessidades. A solução que tenha em conta os interesses de editores, autores, livreiros e consumidores só pode passar por medidas equilibradas que atendam às necessidades de todos e por uma política do livro ágil, justa e democrática. Não pelo policiamento das fotocopiadoras e pelo decretar da miséria dos leitores.
Um humanista no verão
Os cinquenta artigos que compõem a coletânea A História Não Acabou foram quase todos publicados por Claudio Magris no Corriere della Sera entre 1999 e 2006. Ao lembrá-lo quase no final, o escritor sublinha a importância do meio utilizado para a forma tomada pela mensagem, declarando o jornal «um grande ginásio de luta kafkiana com a realidade e um laboratório de linguagem para a contar». Por isso todos esses textos, apesar de curtos e circunstanciais, travam um diálogo permanente, aberto ao leitor comum mas sempre exigente na forma, que materializa a aproximação criteriosa do autor com os acontecimentos que o vão confrontando. Só que, para este, o vínculo não impõe concessões ao fácil ou ao superficial, seja ao nível dos conceitos ou no campo da linguagem, tão comuns, como é sabido, entre os intelectuais que procuram a todo o custo o sucesso mediático. É pois um caminho árduo, mas por isso mesmo imprevisível e enriquecedor, o escolhido aqui para falar de muitas das feridas do presente e das opções que este nos vai fatalmente impondo. Continuar a ler
Os caminhos do extermínio
O título do livro explica-se de forma simples, embora brutal: estima-se que ao longo dos últimos cem anos cerca de 150 milhões de pessoas foram vítimas de iniciativas persistentes de extermínio, responsáveis, no seu conjunto, pela duplicação do número de mortos em combate contabilizados em todas as guerras que tiveram lugar no mesmo período. A tese central de Daniel J. Goldhagen apoia-se nesta contabilidade avassaladora para mostrar que ela não dependeu de acasos, de circunstâncias, ou da iniciativa isolada de dirigentes transfigurados em serial killers, mas antes de escolhas políticas apoiadas num razoável ou mesmo num amplo consenso social. A ideia já se encontrava, aliás, presente numa obra anterior deste cientista político americano, motivo pelo qual foi objeto de feroz crítica: em Hitler’s Willing Executioners, saída em 1996, considerava que a busca da Solução Final determinada pelos nazis apenas fora possível com a cumplicidade, ou pelo menos a complacência, das pessoas comuns, alemães e aliados de outras nacionalidades, sem os quais os burocratas e os destacamentos especiais do Terceiro Reich não poderiam ter levado a cabo de modo tão eficaz o seu trabalho sujo. A obra foi, aliás, criticada por historiadores como Norman Finkelstein, que acusou o seu autor – sendo ambos, acusador e acusado, filhos de sobreviventes do Holocausto – de justificar com a sua explicação a criação de uma «indústria do Holocausto» de orientação sionista. Continuar a ler
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